No dia 18 de abril aconteceu uma perseguição inusitada
nas águas que banham a península da Somália, região conhecida como
Chifre da África. Poderosos navios de guerra e helicópteros da Otan
ficaram nada menos do que sete horas no encalço de uma pequena lancha
tripulada por sete supostos piratas somalis, por fim os encurralando e
abrindo fogo contra eles. O monopólio internacional dos meios de
comunicação reportou o episódio, e noves fora a ausência de qualquer
estranhamento quanto a tamanha desproporcionalidade de força e
esforços, a história toda pareceu muito mal contada.
Abde sendo deportado para o USA
Os sete homens teriam protagonizado uma tentativa de
sequestro frustrada a um petroleiro norueguês, tendo saído em fuga
quando a tripulação atacada conseguiu avisar a frota dita
"antipirataria" que nos dias que correm anda estacionada na costa da
Somália. Uma vez detidos pela Otan, contaram os jornais e agências de
notícias internacionais, os "piratas" foram interrogados pelos
militares e depois liberados, "por falta de alternativa jurídica para
mantê-los presos".
Sabemos bem que, para o USA, alternativa jurídica é algo que se
arranja no âmbito do Direito Internacional— aparato jurídico do
imperialismo — de acordo com o calendário das suas políticas de
ingerência, ou que se dispensa com empáfia diante da urgência de uma
agressão qualquer. Vide o caso do bravo rapaz somali que foi preso em
águas territoriais do seu país natal e depois transportado sob custódia
militar para o USA, onde será a primeira pessoa a ser julgada em um
tribunal ianque pelo crime de pirataria em mais de um século.
Poucos dias depois de a Otan fazer seu exercício de agressão no
Chifre da África, um juiz de Nova Iorque decidiu que o jovem somali tem
18 anos de idade completos, por decreto, sem fundamento, sob a
inexistência de qualquer indício que pudesse identificar sua data de
nascimento com precisão, e a despeito de a mãe do rapaz garantir que
ele tem 16 anos, e dos seus apelos por sua libertação. A decisão
judicial sobre a maioridade de Abde Wale Abdul Kadhir Muse obedeceu
apenas ao critério da instrumentalização da lei para servir às demandas
da metrópole.
Diante desta truculência jurídica, por que teria havido tantos
pudores para esculachar os somalis que, segundo a versão oficial, não
passam de criminosos internacionais encurralados pela frota da Otan? O
fato é que, meses antes deste episódio, quando notícias sobre pirataria
na costa da Somália começavam a ganhar as primeiras páginas do
jornais, um jornalista britânico chamado Johann Hari escreveu um artigo
intrigante no jornal britânico The Independent, sob o título "Estão
mentindo para nós sobre os piratas".
Quem são os ladrões?
Tambor de lixo tóxico jogado na costa da Somália
A rigor, o Estado somali, surgido em 1960 após um acordo de matriz
colonial entre a Itália e a Grã-Bretanha, praticamente não existe mais
desde 1991. É uma terra esquecida, isolada, abandonada pela chamada
"comunidade internacional", entregue à fome e à guerra civil depois de
ser exaurida pelas potências estrangeiras, após décadas de usurpação
imperialista. Nove milhões de somalis não têm o que comer. A
expectativa de vida da população é de menos de 50 anos de idade. Dez
por cento das crianças morrem logo depois de nascer, e 25% das que
sobrevivem acabam não passando dos 5 anos de vida.
Em seu texto no Independent, Hari explica que os países ricos não
tardaram em ver na desgraça somali mais uma oportunidade para pilhar e
afrontar os deserdados do mundo. Ele conta que navios europeus adotaram
o criminoso hábito de roubar os recursos presentes nas águas
territoriais da Somália, principalmente a pesca. Estima-se que a rapina
gire em torno de 300 milhões de toneladas de atum, camarão e lagosta a
cada ano. Os grandes pesqueiros ilegais fazem a festa, enquanto os
pescadores locais passam fome. Afinal, quem pirateia quem no Chifre da
África?
Ao mesmo tempo, os países ricos viram nos mares da Somália o local ideal para jogar todo o lixo nuclear do planeta:
"Exatamente isso: lixo atômico. Nem bem o governo desfez-se (e os ricos
partiram), começaram a aparecer misteriosos navios europeus no litoral
da Somália, que jogavam ao mar contêineres e barris enormes. A
população litorânea começou a adoecer. No começo, erupções de pele,
náuseas e bebês malformados. Então, com o tsunami de 2005, centenas de
barris enferrujados e com vazamentos apareceram em diferentes pontos do
litoral. Muita gente apresentou sintomas de contaminação por radiação e
houve 300 mortes".
Uma das fontes ouvidas por Hari em sua investigação foi ninguém menos
do que o honorável enviado da ONU na Somália, Ahmedou Ould-Abdallah,
que lhe disse o seguinte, com todas as letras: "Alguém está jogando
lixo atômico no litoral da Somália. E chumbo e metais pesados, cádmio,
mercúrio, encontram-se praticamente todos".
Aqueles que na CNN, na Globo ou órgãos que tais são apresentados ao
povos do mundo como piratas, na verdade são conhecidos entre os
populares do nordeste africano como "Guarda Costeira Voluntária da
Somália". Uma pesquisa recente deu conta de que 70% dos somalis aprovam
incondicionalmente esta brigada marítima de defesa nacional. São esses
homens, que têm o respaldo do povo pobre, os que agora o USA e a Otan
estão empenhados em perseguir por terra, água e ar.
É claro, lembra Hari, que há gângsters metidos em todo este imbróglio,
mas este é o contexto no qual se dão as batalhas de soberania no
Chifre da África e de informação sobre como o valente povo somali não
se deixa vencer pela força bruta dos poderosos.
Enquanto isso, o esforço dos mentirosos para manter os não-africanos na
ignorância parece não conhecer limites. A United States Navy (USN), a
marinha ianque, acaba de fechar um acordo com a emissora Spike TV para a
colocação de câmeras de vídeo em seus encouraçados e destroiers, para
fins de exibição do reality show "Pirate Hunters: USN". ("Caçadores de
Piratas"). O anúncio foi feito um dia depois de o USA ter matado três
membros da "Guarda Costeira Voluntária da Somália" em alto mar.
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